Um espaço para semear inquietudes e cultivar reflexões sobre as mazelas e belezas do cotidiano
Colunista: Herena Barcelos
Nutricionista, Escritora, Agente Cultural, Mestranda em Estudos Rurais
herena.barcelos@ufvjm.edu.br
Segundo Freitas e Ximenes (2012), as enchentes são os desastres naturais de maior frequência, no entanto, a ideia de ‘desastre natural’ estremece quando se pensa que grande parte das consequências trazidas pelas cheias dos rios e outros cursos d’água dizem respeito à falta de planejamento, especialmente o planejamento urbano (CANHOLI, 2014). No fim de 2021, muitas regiões do Brasil sofreram impactos das fortes chuvas que tomaram o país, destacando-se o Sul da Bahia e o Vale do Jequitinhonha, regiões marcadas pela convivência cotidiana com a seca. Segundo o jornal O GLOBO (CAMPOREZ, 2021) até o início de dezembro, as enchentes nessas regiões atingiram mais de 75 mil pessoas. Dentre as consequências: imóveis alagados, perda de bens, problemas de infraestrutura e logística nos municípios, perda de mercadorias em estabelecimentos de vendas, desabamentos, pessoas desalojadas, feridas e até mortes. Para as populações rurais, embora as chuvas sejam de maneira geral recebidas como bênçãos, as cheias causaram, além de tudo que já foi citado, a perda de plantações e materiais, quedas de pontes e comunidades inteiras ilhadas. Movimentos de ação social foram criados no intuito de minimizar os impactos e a prosa que segue foi escrita nesse contexto.

UM VIVO NÃO VÊ OUTRA VEZ
Mainha brigou comigo por ser menina que não acredita nos mais vividos.
Mainha errou primeiro porque nem sou mais menina, e também porque nem sou descrente de sabedoria de vida. É que Mainha esqueceu de computar a falha. Não a divina, não a da sabedoria, não a da natureza. Mainha esqueceu de colocar na matemática a falha humana.
Um vivo não vê a mesma enchente outra vez. Foi o que Mainha disse. A sabedoria empírica da observação de nossos antepassados é válida. Não é essa a questão. Mas essa aprendizagem que Mainha trouxe das gerações de antes é de um tempo em que não havia gado que nem gente, em que não havia lixo que nem comida, em que não tínhamos esquentado o planeta. Mainha concordou com o olhar.
A eterna menina de Mainha nunca viu chuva desse tanto. Eu nunca vi chuva desse tanto. Só relato. E fica aquela angústia de que 79 vai voltar. A temida enchente de 79 vai voltar. Já está voltando. E Mainha, e muito mais gente viva em 79, vai ver outra vez.
Sertaneja de raiz, a gente clama quase o ano todo por água do céu. Dá um trem ruim ter que pedir à força divina do universo para a chuva parar. E por uma culpa que nem de certo é dela. Valina de raiz, eu amo o rio que pormeia minha cidade o ano todo. Não posso desamá-lo agora.
Reconhecer nossa parte, a desumana ambição humana, é pensar que a conta vai mesmo mudar. E a população vai experimentar problemas até mesmo em cheia comum.
Peço ajuda para amar o rio, amando o povo pelo cuidado possível, amenizando a dor. Sou uma gota. Mas eu acredito em gota, que é essência de corredeira. E estamos vendo que a correnteza insiste. Resistamos!
REFERÊNCIAS
CAMPOREZ, P. Enchentes atingem 75 mil pessoas em Minas e na Bahia, segundo balanço dos estados. Jornal O GLOBO. Publicado em 12 dez. 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/enchentes-atingem-75-mil-pessoas-em-minas-gerais-bahia-segundo-balanco-dos-estados-25316360. Acesso em 14 fev. 2021.
CANHOLI, A. P. Drenagem urbana e controle de enchentes. 2 ed. São Paulo: Oficina de Textos, 2014.
FREITAS, C. M. D.; XIMENES, E. F. (2012). Enchentes e saúde pública: uma questão na literatura científica recente das causas, consequências e respostas para prevenção e mitigação. Ciência & Saúde Coletiva, 17, 1601-1616. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/bkRHD6mZpb737QGcRfn3g5M/?lang=pt&format=html. Acesso em 13 fev. 2021.
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