Um espaço para semear inquietudes e cultivar reflexões sobre as mazelas e belezas do cotidiano
Colunista: Herena Barcelos
Nutricionista, Escritora, Agente Cultural, Mestranda em Estudos Rurais
herena.barcelos@ufvjm.edu.br
As discussões sobre a relocalização dos sistemas alimentares têm sido pauta de estudos e políticas públicas brasileiras. Nesse sentido, há uma busca pela priorização de circuitos mais curtos de distribuição e comercialização, trazendo como exemplos formas de venda direta: a venda institucional para alimentação escolar e outros programas voltados à agricultura de base familiar, pequenas lojas de produtores ou de ligadas ao agroturismo local; vendas ambulantes ou à domicílio, rotas temáticas e as feiras livres (SCHNEIDER; FERRARI, 2015; DAROLT et al., 2016). Uma importante vertente dos circuitos curtos é a retomada do vínculo entre produtores e consumidores locais (POULAIN, 2004). As feiras de agricultores, ao estimular o consumo de alimentos regionais, são uma expressiva manifestação do comer para além de sua dimensão biológica, estando ligado a questões de diferentes ordens: resgate das práticas alimentares do povo local, valorização do patrimônio cultural alimentar, incentivo ao desenvolvimento local e prevenção de doenças crônicas e deficiências nutricionais (CHAVES et al., 2009). Schneider e Ferrari ( 2015) apontam que as feiras estão inseridas nas cadeias que chamam de “relação face a face”. Para além do aspecto econômico, as feiras permitem o contato direto entre produtor e consumidor, envolvendo aspectos de territorialidade, proximidade e interação.

ARREDONDAR
— Olha o Milho!
— Quiabo e maxixe fofo. Tá baratinho o pacote!
— Olha o mamão! Mamão madurinho, mamão de vez, mamão verde pra fazer doce, bom de fazer quibebe. Tem mamão do jeito que a senhora quiser!
A evidente maioria de mulheres se apertava entre as barracas amontoadas, e umas entre as outras, para encontrar, em meio àquele furdunço de vegetais, os que estivessem melhores e mais baratos. Para, então, pedir um desconto.
O trajeto já seria difícil sem as grandes cestas de taquara que algumas delas insistiam em carregar. Mas poucas pessoas tinham coragem de facilitar a vida, utilizando-se de sacolas menores que possibilitassem dividir o peso e equilibrar o corpo. Parecia um medidor social de status, quanto mais imponente a cesta, mais a senhora se sentia importante, e, assim, compensasse a estadia naquele ambiente fora dos padrões sociais de organização.
Para completar a maleza dos últimos dias de Joel, foi com ele que Dona Magélia, tia da esposa, cismou de aporrinhar.
— Tá caro, viu.
— Tá não, senhora. A seca foi braba, e manter as plantações tá difícil demais.
— Vocês são choradores de barriga cheia. Pois já sei que tá chovendo aí nas roças.
— Choveu mais lá pra cima, pros lado de Pedra Verde, lá no Santo Antônio tá chovendo tem só dois dias.
— Pior é aqui na cidade, que num caiu foi uma gota. Tem é cabeça de porco enterrada aqui, só pode.
— Pois é.
— Mas quem precisa de chuva são vocês, mesmo. Tendo chuva pra plantar, a vida suas tá resolvida.
— Nós num veve só pra plantar, não, dona Magélia. Nós somos gente que precisa de muitas coisas, que nem qualquer um.
— Mas já é meio caminho andado… e na barraca ali do lado o preço tá melhor.
— Pois a senhora pode voltar e comprar lá.
Pra quem não conhecia Joel, pareceu má educação.
Dona Magélia, que no fundo até se orgulhava da fama de antipática, seguiu pela feira, reclamando, satisfeita com a possibilidade de candongar, como se Joel lhe tivesse dado um presente.
A feira vinha ganhando espaço na cidade, depois que o prefeito mandou construir as barracas e na medida em que o pessoal da sede se recusava a plantar, como antes, as hortas do próprio sustento. Também já não queriam criar porcos. E as vacas nos quintais estavam fora de cogitação.
O barulho começava de madrugada. Os cavalos chegando. As buracas de verdura jogadas no chão. Naquele sábado, Joel pegou um dos piores lugares, porque, com a estrada ruim, piorada com a chuva, a viagem delongava para mais de hora.
O clássico fuzuê incomodava alguns que visitavam a feira pela primeira vez. Mas era já do cotidiano dos sábados dos moradores de Água Branca. Era difícil vender o trazido por preço bom, pois quase todo agricultor ali da feira plantava um pouquinho de cada, que era mais ou menos um pouquinho de tudo.
— Faz menos pra nós na batata doce, Joel.
— Esse preço já tá bom demais, dona. Tá dando trabalho pra produzir.
— Eu quero comprar os produtos da roça que são mais naturais. Mas lá no mercadinho tá bem mais barato.
— Dessa vez, então, vou arredondar pra dona.
Referências
CHAVES, L. G. et al. The national school food program as a promoter of regional food habits. Revista de Nutrição, v. 22, n. 6, p. 857–866, 2009. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/262737607_The_national_school_food_program_as_a_promoter_of_regional_food_habits. Acesso em: 22 mar 2022.
DAROLT, M. R. et al. Redes alimentares alternativas e novas relações de produção: consumo na França e no Brasil. Ambiente & Sociedade, v. XIX, n. 2 p. 1-22, 2016. Disponível em: https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1040461/redes-alimentares-alternativas-e-novas-relacoes-producao-consumo-na-franca-e-no-brasil. Acesso em: 22 mar. 2022.
POULAIN, J. Sociologias da Alimentação: os comedores e o espaço alimentar. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004. 311p.
SCHNEIDER, S; FERRARI, D. L. Cadeias curtas, cooperação e produtos de qualidade na agricultura familiar – o processo de relocalização da produção agroalimentar em Santa Catarina. Organizações Rurais & Agroindustriais, Lavras, v. 17, n. 1, p. 56-71, 2015. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/151097. Acesso em: 22 mar. 2022.
Dicionário de Jequitinhonhês
Amontoadas – acumulado em montes
Aporrinhar – incomodar; chatear
Bruacas – malas rústicas de couro cru, usadas sobre animais para transporte de objetos
Candongar – reclamar; intrigar
Cismar – implicar
Delongar – estender-se
Furdunço – algazarra
Fuzuê -algazarra
Maleza – desgraça; mal
Que nem – tal qual; assim como
Quibebe – refogado
Veve – vive
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